Meu pai Antônio já por tradição, todo ano fazia a festa junina de Santo Antônio para reunir a família e os vizinhos em nossa pequena chácara em Itaquera.

A festa era preparada com antecedência e minha mãe ficava encarregada de preparar os doces típicos que fazia com muito carinho e competência, pois para ela nada mais importante no mundo que receber elogios de suas comadres de como estes estavam deliciosos.
Meu pai como que por um ritual, sempre, uma semana antes, ia até o Calipeiro onde hoje está o Itaquerão, para escolher o mais belo exemplar de eucalipto que seria transformado em mastro para sustentar as imagens dos três santos, Antônio, João e Pedro, ao pé do qual na noite da festa seria rezado o terço sob o comando do Juca da dona Olâmpia, o “maió” rezador da região.

A mim ficava a missão de, durante as semanas que antecediam a festa, catar lenha para armar a fogueira, que não podia ser pequena pois, pela tradição deveria queimar a noite toda e amanhecer ainda acesa.
O dia da festa amanheceu lindo como um típico de inverno com sol tímido num céu sem nuvens de um azul brilhante que contrastava com o frio dos ventos de inverno.
Minha mãe e Ana minha irmã deram início a decoração do quintal que foi todo enfeitado com bandeirolas de papel de seda colorido. Meu pai como exímio carpinteiro já ia improvisando os bancos de madeira de construção ao redor da fogueira. Eu fui escalado para ir buscar um saco de capim gordura, de preferência seco, que seria utilizado no processo de acender a fogueira.
Missão dada missão cumprida, peguei um saco de estopa que utilizava para carregar o capim que normalmente eu cortava para os coelhos, passei na casa do João Turco, e chamei o João Burrão para ir comigo buscar o capim.
Sabia que na entrada do Calipeiro havia muito capim gordura, pois eu o havia avistado no dia em que fui com meu pai buscar o mastro para o estandarte dos santos. Fomos diretos para lá e foi muito fácil cumprir esta missão, pois nesta época de seca quase todo o capim estava bem seco, no ponto para ser queimado.

Ao colocarmos o capim no saco avistamos, mais a frente em uma touceira isolada em uma haste de sementes do capim gordura, uma bola escura que ao longe nos parecia ser um ninho de bico de laca, um passarinho de porte pequeno que vive junto aos papa-capins. Nos aproximamos do ninho e pudemos notar que não era de bico de laca e sim era uma bola de carrapatos micuins também conhecidos como carrapatos pólvora.
Nesta época do frio eles escalam estas hastes e se amontoam para acasalarem e depois serem levados pelo vento para reprodução em qualquer lugar. Uma bola desta deve ter mais de milhão de pequenos seres, prontos para encontrarem um animal mamífero de sangue quente e se alimentar antes de morrem.
Olhei para o João e ele para mim. Pronto a traquinagem já estava desenhada. Corremos para casa com o saco de capim e retornamos para o Calipal agora com um saquinho de papel destes onde eram vendidos a granel os grãos de arroz e feijão, que comprávamos no armazém de secos e molhados do Seu Luiz Português.
A habilidade do João era extrema. Vergou suavemente a haste do capim gordura, colocou o saquinho debaixo e com um leve bater de dedos de forma contínua foi derrubando toda a ninhada para dentro do saco. Agora saco com a boca amarrada era só levar e guardar nosso tesouro para o grande momento.
A festa tinha seu ritual, ou seja, o povo ia chegando a partir das 18 horas e até as 20 todos já estavam lá. Às 20 horas em ponto meu pai hasteava o mastro com os santos sob um estrondar dos fogos que simultaneamente eram queimados pelos especialistas, meus tios Nine e Antônio. Mastro fixado era a hora de todos sentarem-se nos bancos para a reza do terço. Após o terço a fogueira é acesa e começa a comilança. Naquele ano meu pai havia contratado um sanfoneiro que iria alegrar a festa e tocar para o povo dançar.
Assim que o mastro começou a ser erguido e todos estavam com o olhar fixo nos santos, os santinhos João e eu pegamos o saquinho e esparramamos os “porvinhas” por todos os bancos.
Já na segunda Ave Maria que o Juca rezava teve início o baile, sem música, porém era um tal de coça, coça, mexe, mexe, sem parar e que por respeito a reza ia sendo aguantado com bravura, principalmente pelas mulheres.
Não teve jeito, antes do primeiro Pai Nosso o povo não aguentou e foram se levantando dos bancos, os homens coçando para todo lado e as mulheres mais recatadas correm para dentro de nossa casa onde minha mãe as ajudou a livrarem-se dos carrapatos já depois do estrago feiro.
Meu pai indignado falou que os carrapatos só poderiam ter vindo junto ao feixe de capim gordura, e sendo assim ateou fogo na fogueira e solicitou os homens que passassem tochas de fogo pelos bancos e pelo terreiro para matar os micuins.
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A fogueira iluminou todo o quintal, porém o estrago era grande e a mulherada não para de coçar. Minha mãe tentou distribuir suas guloseimas, mas não adiantou as nove da noite só restavam no quintal o Chico Torto que sempre ficava até a meia noite quando descalço passava sobre as brasas da fogueira sem queimar os pés e o Seu Eduardo que ficava até acabar o caldeirão de quentão.
O assunto foi tema das conversas entre as comadres durante toda a semana e motivo de gargalhadas quando comentavam sobre as mais diferentes e engraçadas formas de se coçar de cada uma das senhoras.
Meus pais ficaram frustrados com a festa do Micuim, porém atribuíram o fato a uma fatalidade.
João Turco e eu nunca contamos a verdade para eles, e durante muitos anos seguidos sempre que havia a festa de Santo Antônio na minha casa nós lembrávamos este fato olhávamos um ao outro de soslaio e riamos da piada que somente nós entendíamos.
Foi uma festa junina para nunca mais ser esquecida.
Marcos Falcon