Bem ali no topo do morro ficava, ou melhor, fica atรฉ hoje, o campo de futebol do Falcรฃo, o meu time do coraรงรฃo, onde comecei a jogar aos sete anos. Na parte debaixo do campo havia uma pequena chรกcara que diziam pertencer a um tal de seu Tatu. Esta propriedade fazia divisa com nosso terreno, tambรฉm bastante grande, quase uma chรกcara.
Ali ela morava, a รกrvore, uma figueira secular gigantesca, cujo tronco principal, que se dividia em dois logo apรณs o inรญcio de sua formaรงรฃo, requeria quatro homens de mรฃos dadas para abraรงรก-lo. Sua copa cobria praticamente um quarto da chรกcara, produzindo uma das maiores e melhores sombras de que eu jรก pude desfrutar.
Na figueira-grande, como era conhecida, pois havia a figueirinha lรก na Rua Tomazzo Ferrara, ao lado do campo do time do mesmo nome, o Figueirinha Futebol Clube, passei grande parte de minha vida. Ali era o meu ponto elevado de observaรงรฃo, pois de um de seus galhos mais altos podia ver toda a movimentaรงรฃo no morro, quem subia, quem descia, assistia ao jogo no campo do Falcรฃo e atรฉ do campo do Democrรกtico que ficava lรก no brejรฃo perto da Estrada de Itaquera. Ali eu competia com meus amigos Joรฃo Turco, o Cutrucรฃo e o Giba quem era melhor escalador de รกrvore, subindo atรฉ o galho mais elevado e retornando ao chรฃo em menor tempo. Nela, eu me escondia e protegia contra as surras de minha mรฃe.
Ao lado da รกrvore existia a casa da chรกcara, tรญpica casa antiga de telhado de quatro รกguas e pรฉ direito elevado. Nesta casa, num passado mais distante, morou o seu Antรดnio, mais conhecido por Guardinha, pois era policial e de estatura pequena. A esposa do Guardinha, dona Sunta (ninguรฉm sabia o verdadeiro nome dela), uma pessoa muito simples, de hรกbitos interioranos, mรฃe de um รบnico filho, o Argemiro, morreu de tanto apanhar de seu marido, que costumava chegar bรชbado em casa e por nada surrava a mulher e o filho.
Apรณs a morte de Dona Sunta, Argemiro e seu pai sumiram de lรก e nunca mais foram vistos. A casa ficou vazia e abandonada por vรกrios anos.
A partir deste ocorrido, eram comuns e constantes os passantes pela rua, durante a noite e a madrugada, ouvirem gritos e pedidos de socorro, que afirmavam virem de dentro da casa e que com certeza eram de Dona Sunta.
A casa e a รกrvore ganharam fama de serem mal-assombradas e de que um feitiรงo havia sido jogado contra aquele lugar. Tanto a casa como a รกrvore seriam destruรญdas pelo espรญrito de Dona Sunta.
Continuava a brincar na รกrvore e a admirรก-la, porรฉm confesso que nunca estive perto dela durante a noite. Na casa moraram vรกrios vizinhos, como o Seu Zรฉ dos Passarinhos, que foi um grande amigo meu, pois admirava muito sua coleรงรฃo de pรกssaros da terra. Estive na casa por inรบmeras vezes, porรฉm quando o crepรบsculo se aproximava eu tratava de ir para minha casa, nunca aceitei um convite do Seu Zรฉ para jantar com ele.
Quando Seu Zรฉ mudou-se, a casa tornou a ficar abandonada por muito tempo e tiveram inรญcio os saques ร mesma. A princรญpio foram roubadas as janelas e portas, seguido por telhas e por fim atรฉ os tijolos foram demolidos e roubados. Num perรญodo de alguns meses, a casa desapareceu.
Sem a casa, a Figueira Grande destacou-se ainda mais na paisagem, e agora, da janela de meu quarto, eu podia ver a รกrvore e ouvir o vento assoviar entre suas folhas durante as noites. Era uma imagem que nรฃo me agradava, principalmente porque na comunidade jรก estava sendo comentada a boca pequena que continuavam a ouvir os gritos de Dona Sunta, porรฉm agora eles vinham da รกrvore.
Eu jรก era um rapagรฃo de uns dezenove anos quando ocorreu uma grande tempestade de verรฃo em Itaquera, daquelas de botar medo atรฉ em caรงadores de tornado. Eu estava em casa, foi num domingo ร noite quando um grande estrondo, seguido de uma luz que cegava os olhos, foi ouvido. Minha mรฃe, de imediato, gritou por Santa Bรกrbara e comeรงou a rezar. Meu pai falou: โeste foi pertoโ.
A tempestade, como todas as de verรฃo, passou, e no dia seguinte fomos acordados por um grande alvoroรงo da vizinhanรงa, que aos poucos se aglomerava ao lado da velha chรกcara.
O Giba, meu grande amigo, me tirou da cama na marra para ver o acontecido. Nรฃo queria acreditar, a Figueira Grande fora destruรญda por um raio dos mais potentes que jรก caรญram na regiรฃo. Em menos de um mรชs ela era apenas um velho esqueleto carbonizado e teve seus galhos cortados e arrastados pelos vizinhos para servirem de combustรญvel (lenha).
Esta semana estive lรก. Fui jogar bola no Falcรฃo do Morro. A chรกcara foi loteada e onde ficava a Figueira Grande agora รฉ a piscina de uma bela casa.
Eu nรฃo creio em bruxas, masโฆ
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